Mais uma Comrades... (o relato tardio!)

13/11/2015 18:31

Mais uma decolagem, mais uma aventura. Sobe-desce, sobe-desce, sobe-desce. Primeiro com asas alheias; depois com as próprias pernas. Não era estreia, apenas mais um ano subindo o morro rumo a Pietermaritzburg.

A primeira participação tem a tensão da novidade, a segunda é quase reestreia (outro sentido, outra prova) e carregamos o peso extra da luta pela terceira medalha. Feito o back to back, a terceira participação era um passeio.

A 90ª edição distribuiu uma medalha especial, maior. Um bom presente, que desejava incluir na minha coleção. Quem fez o back to back recebeu a medalha adicional de ida e volta consecutiva em tamanho aumentado. Há boatos que o verdadeiro motivo do tamanho privilegiado não era o aniversário da prova, mas participação de um tal Mr. Lip... alguma coisa... Será???

A primeira parte foi concluída sem problemas: centenas de quilômetros de treinos distribuídos em 2 maratonas, um longão de 61 km – que chamo de requisito mínimo - e muitos outros menores. Treinei menos no total, apenas cumpri o básico.

Poucos dias antes do embarque, a ansiedade se apresenta: algo como “em breve, você vai correr 87 km!” Coisa de quem sabe que ficou devendo na preparação. Um amigo bom de mapas e de distâncias – rodoviárias, destaco! – solta comparações como “é do Centro a Campo Grande. E volta!” Ah, que animador...

Inspirado pela África do nosso imaginário, surgem algumas metáforas na cabeça. Misturo ambiente e dúvidas. Do tipo “o desfecho da caçada é sempre incerto.” Ei! Não sou leão ou zebra, no máximo um observador-participante. Arbitro a disputa entre coração e mente encerrando aquele debate. Se a dúvida é parte do roteiro, a surpresa deve completar a diversão. Vida e Comrades que seguem...

Confiança exagerada acelera as pernas, porém usualmente cobra a sua parte no final. A insegurança estimula a prudência. Ataco as subidas com naturalidade, porém com menos ímpeto que o habitual. O clima não é infernal como em 2013. Os amigos se espalham pelos quilômetros. Deixo um colega que ia ao lado seguir mais rápido e procuro uma velocidade de conforto. "Até a chegada, Amaro!"

Conheci uma coleção de problemas. Sinto muitos gases e reduzo o ritmo. Ameaço uma caminhada breve e eles se acomodam. Ou quase... Relaxada momentânea e estou ao lado de um banheiro químico. Não era opcional! Desconheço forma higiênica de contar esse trecho da história. Se preferir, pule o parágrafo!

Papel higiênico disponível era improvável. E a cueca é um substituto bastante imperfeito... Garanto! Não posso correr mais 30 quilômetros apenas “semi-limpo”. Uso a opção alternativa e penso como conseguir a primeira opção. Algumas poucas centenas de metros depois do banheiro encontro um grupo de apoio que tem o precioso material. Corro feliz a distância de volta! Ufa!

“Atrito, em física é o componente horizontal da força de contato que atua sempre que dois corpos entram em choque e há tendência ao movimento. É gerada pela aspericidade (rugosidade) dos corpos.” No caso, os corpos são o short que estou usando e a minha perna.

A virilha já estava em estado lastimável. Se esse tipo de “assado” fosse medido como churrasco, eu estava entre o bem passado e o esturricado. Historicamente, meus raros problemas de assadura ocorreram por causa de pausas durante os treinos. Uso a vaselina oferecida pela prova e controlo a situação. Piorar isso não vai... Outro problema resolvido.

Sobrecarregamos o corpo com muitos líquidos e alguns sólidos ao longo de tantas horas em movimento. É a vez do estômago entrar na festa. Estou bastante enjoado. Faltam uns 20 km... Somando, três partes do corpo pedem atenção: estômago, intestino e virilha. Não preciso de câimbras! O relógio era apenas para registro do percurso no GPS. Coloco na exibição de hora. Não quero informações de pace, minutos etc. Tenho muito tempo para caminhadas antes do tiro final. E assim fui. Pole pole.

Ao longo da prova, observo, como passatempo, o número de participações dos colegas. A informação é apresentada no número de peito. Então surge Alan Robb! Essa lenda estava na sua 42ª Comrades e é o principal candidato ao 5º Green Number. Ele caminhava e exibia o esforço que a jornada exigia. Aquela ultrapassagem era como driblar o Nilton Santos.

Abandono também a ingestão de líquidos. O aparelho digestivo estava completamente saturado. "Vamos chegar!" O nós incluia eu comigo mesmo. Já nos preparativos para a chegada, surge uma camarada do nosso grupo. Lady, outra lenda! O magnetismo da linha da chegada me puxa e acelero ao seu encontro. Mais sofrido, igualmente intenso. Mais uma Comrades! Mais uma história com os amigos. “Hard is what make it great!”, o lema da prova. Algo como a dificuldade é o que faz disso grandioso. Justo!

Não estarei lá em 2016. Uma eventual quarta participação fica para “um dia, quem sabe...”