Caminhos da São Silvestre: tradições e alterações

19/09/2011 11:42

Foi com muita surpresa e com alguma tristeza que recebi a notícia da mudança no percurso da São Silvestre, a mais tradicional corrida de rua do Brasil. “Que droga, acompanho pela TV a subida final desde os tempos de criança e adolescente... Após inúmeros tiros finais ao lado de Paul Tergat, não terei oportunidade com as minhas próprias pernas...” E a alteração já foi fato consumado, sem chances para despedida e participação de emergência ainda este ano... Pelo o que li, foi mera decisão técnica da Companhia de Engenharia de Tráfego da cidade de São Paulo.

Ainda não tinha colocado essa corrida no meu roteiro objetivamente. Confesso uma combinação de preguiça frente à correria imposta pela data do evento com algum medo interior. Tinha um receio sincero que ficar apenas encaixotado entre milhares e não aproveitar o momento. Não se trata de uma oportunidade para marcas pessoais, mas uma etapa indispensável na carreira de qualquer corredor brasileiro, dos profissionais aos amadores. Não queria eventualmente ficar desapontado e quebrar esse mito infanto-juvenil. Acho que não há mais esse risco. Sem a subida da brigadeiro Luiz Antônio, será mais uma ótima corrida, que um dia entrará no meu currículo. Porém sem o fascínio de outros tempos.

Quem conhece um pouco o mundo das corridas sabe que a centenária Maratona de Boston dispensa apresentações. É simplesmente a mais antiga e tradicional das corridas. Adicionalmente, pode ser considerada a “Olimpíada” de muitos amadores, pois a participação está condicionada à conquista de um índice técnico muito difícil, missão para pouquíssimos esforçados e competentes corredores. Sim, a Maratona de Boston também passou por ajustes para melhor acomodar os participantes. Algumas centenas de jardas pra lá ou pra cá. Em mais de cem anos de evento, muita coisa aconteceu no mundo das corridas. A própria distância de 42.195m foi definida. Portanto, adaptações são naturais. Porém a Associação Atlética de Boston, organizadora do evento, valoriza a tradição.

E se aqui o evento é no Ano Novo, lá é no tradicional Patriots' Day, feriado em memória a um histórico episódio que deu início ao processo de independência estadunidense, chamada por eles de Guerra Revolucionária Americana. Sim, aquele famoso protesto contra os impostos sobre o chá, quando colonos, vestidos como índios, jogaram um carregamento no mar. Certamente alguma professora falou sobre isso na escola. A data é celebrada na terceira segunda-feira do mês de abril.

Alguém atualmente imagina a Maratona de Boston sem a famosa subida conhecida como Heartbreak Hill? Bom, eu não imaginava a São Silvestre sem a Brigadeiro Luiz Antônio... Mas acho que foi tradição para mim. Sem ironias, afinal, minha “experiência” é muito menor que a existência da prova. Muitos podem ter falado coisas semelhantes em 1989, quando a corrida deixou de ser realizada à noite....

Tomo como referência, em defesa das modernizações, o excelente texto de Sidney Daguano, apresentado em seu blog no portal globoesporte.com. Para o jornalista, simplesmente “vai mudar mais uma vez para se adequar aos novos tempos,” em conseqüência do crescimento da comemoração do Ano Novo na mesma Avenida Paulista. Simples assim, sem traumas. Pelos comentários que li, palpito que a maioria das pessoas, guiada por um senso bastante prático, também achou boa. De qualquer forma, é melhor que a lamentável entrega prévia de medalhas, ocorrida em 2010. Agora o número de participantes poderá ser maior. Isso é ótimo, democrático, inclui mais corredores. E poderiam reduzir o valor da inscrição, diante de tanta escala!

Sidney Daguano define que “essa renovação faz parte da tradição da São Silvestre”. Informa que em 87 anos de existência, já houve 12 percursos diferentes. A distância fixa de 15.000 é relativamente recente, data de 1991. A corrida começou sem trajeto ou distância fixos. Sim, mas muita coisa mudou no esporte desde 31 de dezembro de 1924! De qualquer modo, penso que o Brasil não é muito afeito a tradições. Pra mim, a tradição era a corrida, não a festa. Mas suspeito que eu estava errado...

Acho que a Avenida Paulista é grande o suficiente para acomodar corredores e as boas vindas ao novo ano. Analisando com atenção, a minha bronca é com a mudança, sim, mas especialmente com a motivação. Como uma festa, que começou há pouco, pode conseguir sentar na janela das prioridades e deslocar essa senhora octogenária? Possivelmente, existe forte argumento financeiro para a mudança, ainda que a corrida, com seus milhares de turistas, seja relevante neste aspecto. Colocamos essas figuras e suas fantasias alguns quilômetros para o lado e tudo resolvido. Teremos mais consumidores à meia-noite e mais inscritos chegando no Ibirapuera. Todos mais satisfeitos. Ou quase todos... Uma boa cifra é capaz de criar ou destruir tradições rapidamente. São Silvestre, até um dia!