Comrades, a prova: o mais longo dos dias

26/06/2013 09:41

A Comrades é uma corrida mágica. O ritual da largada emociona e estimula até mesmo o mais rabugento dos corredores. A abertura é com o Hino Nacional da África do Sul, seguida da tradicional Shosholoza e do tema Carruagens de Fogo. Até a mais sedentária e anti-esportiva das criaturas associa a música às corridas. Antes do estrondoso tiro de canhão, o galo canta. Sim, um dia alguém imitou um galo e virou tradição. Todos, já muito bem acordados, começam a correr.

O roteiro padrão inclui muito frio e abandono de casacos ao longo do percurso. Não em 2013. Definitivamente, não! A previsão do tempo, confirmada ou até superada, foi de temperaturas entre 18 ºC e 30 ºC – mais de 10 ºC acima das médias históricas. O facebook da prova classificou como a edição mais dura. Difícil comparar, mas certamente esteve entre as mais duras.

Falamos de um dos eventos mais tradicionais do mundo das corridas. Não à toa, muitos registram na pele a conquista. A Comrades transforma os participantes, afetando a intimidade de cada um, provocando situações limite de profundo auto-conhecimento. Completá-la é quase um dever cívico para um sul-africano. E entenda como “completar” fazer duas edições consecutivas e receber a terceira medalha (back to back). Nos anos ímpares, são 87 km e predominam as subidas; nos anos pares, 89 km e inverte-se o sentido, descendo.

Os primeiros quilômetros foram muito engarrafados. Blocos de corredores impediam o avanço. Muitos caminhavam mesmo nas subidas iniciais. Imagine-se no mais famoso e lotado circuito de corridas do Brasil, largando no meio. Quem já vivenciou o drama não precisa de maiores explicações. O primeiro posto de abastecimento demorou um pouco a aparecer e estava vazio.

A corrida mesmo começou perto do 20 º km. Ótimo suporte e corredores já com algum espaço. Ataco 2 géis de carboidrato na primeira metade da prova (na primeira maratona!). Sem novidades. Fazia muito calor e a hidratação tornou-se especialmente crítica. O clima seco e o vento forte (predominantemente contra) aumentavam as dificuldades. Aos poucos, surgem os primeiros alimentos sólidos. Aceito um hambúrguer apenas para registro das imagens para um amigo literalmente fominha. Arrisco apenas o pão. Ignoro o cachorro-quente (!) e as balas. A batata cozida e mergulhada em sal grosso é pico de pressão imediato. Comi 3, que ajudaram a repor minimamente o estoque de sódio consumido, porém a sede foi forte. Desacostumado com essa novidade nas corridas, negocio com o estômago e selecionamos juntos apenas doces. Bananas, biscoitos e chocolates.

Escolho estratégia diferente da maioria e prefiro evitar caminhadas. Gosto de manter o ritmo constante. Depois de uns 50 km, decido poupar as pernas e ando nos trechos mais difíceis. Tudo pode acontecer depois de tanto esforço. Correndo no limite, podemos ter um súbito surto de euforia ou de quebra. Como o objetivo era chegar, sou cauteloso. Não tinha canja de galinha na alimentação disponível...

As subidas foram muitas. Para todos os gostos e capacidades. Quando o lendário Bruce Fordyce disse, em palestra para os brasileiros, que alguns top 10 caminham na temida Polly Short, eu tive certeza que era uma brincadeira do bem-humorado e simpático campeão. Isolada, ela não assunta. É menos difícil que os piores trechos da Vista Chinesa, por exemplo. Colocada depois de 80km, pode derrubar favoritos e alterar resultados. Ele fez outro alerta: “é uma corrida estúpida, eles colocam as placas no sentido errado!” As placas não indicam os quilômetros já corridos como normalmente é feito, mas a distância que falta. Não é agradável ver uma placa de 50 km depois que você fez 37 km...

Bebo muita água e sigo para a linha de chegada. Entro no estádio com segurança e arriscando uma acelerada. Missão cumprida: sorriso e alegria na linha de chegada! De causar inveja em uma certa especialista em chegadas comemoradas. Finalizei em 9h e 37min.

Antes, no hotel, me juntei a mais 6 corredores cariocas. Eram 4 da Speed e 2 filhos do vento, assessoria que me ajudou na minha primeira maratona na vida. Grandes lembranças. Sou do Chão do Aterro. Infelizmente não vi quando passei por dois dos colegas. Finalizo com a certeza de que alguns me esperavam há tempos. De imediato, sou atualizado.  Dois passaram apuros.  A ansiedade aumenta a cada minuto e um clima de desapontamento domina  quando o computador confirma uma desqualificação no grupo. É possível correr com câimbras e dores diversas, mas sem combustível, o corpo ruma para o colapso. Se o estômago começa a rejeitar líquidos e sólidos, a desistência é questão de tempo e demonstração de inteligência. Ficamos até o final do evento, as 12 h de prova. Vi gente perdendo a medalha e sendo apagada da edição de 2013 ao não cruzar a linha de chegada para ajudar os outros. É triste ver a decepção daqueles que se esforçaram muito mas não concluíram dentro do limite por meros minutos ou segundos.

Quanto te dizem “you are looking good”, não é verdade. Sua mãe não concordaria com eles. É apenas um grande incentivo. Todos os corredores são estimulados e muito bem tratados pela verdadeira multidão que acompanha a prova nas ruas. Brasileiros, somos especialmente festejados. Nos trechos mais populosos, a cada 100 metros ou menos alguém fazia alguma saudação com referência ao nosso país. Vi crianças de 6, 7 anos reconhecendo nossa bandeira. Somos parecidos em pontos positivos e negativos. Nossa famosa seleção de futebol, os treinadores brasileiros e a sucessão de sedes da Copa apertaram o laço através da bola.

Sem qualquer referência ao mundo das corridas, um dia um amigo tirou da cartola a seguinte pergunta: “o que te faz sentir orgulho do Brasil?” A resposta era absolutamente pessoal e livre. Agora respondo rápido: correr na África do Sul!